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quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27323: O vinho... pró branco de 2ª e pró tinto de 1ª (1): o "vinho para o preto" em Lourenço Marques, a "água de Lisboa" em Bissau e a "cerveja Cuca" em Luanda...



Capa do livro do José Capela, "O vinho para o preto: notas e textos sobre a exportação do vinho para África". Porto: Afrontamento, 1973, 170 pp.




Esta é uma variante popular, pícara (e sem ofensa para os crentes...), da oração tradicional, rezada pelos nossos avós, há 100 anos, para pedir a benção de Deus ao deitar e ao acordar: "Com Deus me deito, com Deus me levanto, na graça de Deus e do Divino Espírito Santo"-


1. Fui desencantar este livrinho arrumado no sótão mas felizmente ainda sem estar  roído  pela traça. Lembro-me de o ter comprado, na feira do livro da Lourinhã, que eu próprio organizei, com outros jovens da terra, na "praça do coreto"... Em 1973 ! 

Não estava propriamente proibido, mas vendia-se por baixo do balcão como outros livros que corriam o risco de ser apreendidos, arbitrariamente, pela PIDE/DGS, dando um rombo nas "finanças" da organização... (Havia uma delegação a 18 km dali, em Peniche. E alguns dos pides eram mesmo burros: eram capazes de implicar com uma "bíblia protestante", como fizeram ao meu amigo Bernardino Anastácio, o meu barbeiro, que um dia foi dentro por ser "fala-barato" e do "reviralho". Revistada a barbearia e  a casa, só lhe levaram uma "bíblia protestante"...Acabou por ser solto, por falta de provas  ou indícios de ser um "perigoso comunista".)

É reconhecido hoje que este livrinho do José Capela dava já, na época, surpreendentes pistas para a compreensão das dinâmicas económicas e sociais da "nossa" África, particularmente de Moçambique.

 A guerra colonial estava ao rubro e tudo o que se escrevesse sobre as colónias (ou "províncias ultramarinas") , a sua história, a economia, a sua sociedade..., era lido com avidez. Só não se podia falar da guerra, essa, sim, tabu. Para mais, vindo de autores   "desalinhados" com o regime, como o José Capela.

Eu sabia, em 1973,  que o José Capela era  padre ou ex-padre. Mas pouco mais. Afinal é o pseudónimo de José Soares Martins (Feira, 1932–Porto, 2014), um historiador e jornalista português cuja vida e obra estão profundamente ligadas a Moçambique e à análise crítica do colonialismo português. 

Natural de Arrifana, concelho da Feira, concluiu aos 22 anos o curso de Teologia no seminário do Porto em 1954. Chegou a Moçambique  anos depois, como padre. Mas enveredou rapidamente para o jornalismo.  Foi chefe de redação e diretor-adjunto do "Diário de Moçambique", com sede na Beira, o  jornal fundado pelo primeiro bispo daquela Diocese, D. Sebastião Soares de Resende (1906-1967), e de resto seu tio. Sim, o  famoso Bispo da Beira que entrou em  rota de colisão com Salazar e o seu regime (tem mais  400  páginas o seu processo no arquivo da PIDE/DGS).

Em 1962 o José Capela  relançou naquela cidade moçambicana o semanário "Voz Africana", que dirigiu, de facto, até 1968. Este jornal teve nesse período um papel importantíssimo na consciencialização dos moçambicanos,  negros, sobretudo no que respeitava à exploração económica de que eram vítimas.

Com a morte prematura do bispo da Beira,  ficam praticamente  inviabilizados  aqueles dois projectos jornalísticos.  Por outro lado, com as crescentes pressões que as autoridades portuguesas  iam fazendo sobre vozes incómodas como a dele,  o José Capela teve de abandonar bruscamente Moçambique. Contudo, vai levar primeiro para o Brasil e depois para a Bélgica, documentação importante,  nomeadamente os escritos inéditos de D. Sebastião e a volumosa correspondência que reuniu, enviada pelos moçambicanos, negros,  para a "Voz Africana" sob a forma de "cartas ao diretor". 

Essa documentação ajudou-o a  fazer  retrato da situação social que então ali se vivia, e de que ele foi também testemunha direta. Com a censura em vigor,  não puderam ser publicadas na altura. Mas dessa correspondência, ele vai reunir uma amostra significativa  no livro "Moçambique pelo Seu Povo" (1971). Não conheço a obra (nem outras do autor sobre a história colonial de Moçambique), pelo que não vou falar dela.

 De regresso a Portugal, em 1970, fundará no Porto  o  prestigiado jornal "Voz Portucalense" . Tornou-se editor (ajudou a fundar as editoras Confronto e Afrontamento), e participou também nos "Cadernos Anticoloniais". Depois da independência de Moçambique,  serviu entre 1978 e 1996 como Adido Cultural na Embaixada de Portugal em Maputo. 

O seu livrinho  "O Vinho para o Preto" (1973)  (disponível aqui, íntegra,em formato pdf) é, pois, o único que eu conheço do José Capela. Tem como  subtítulo: "Notas e textos sobre a exportação do vinho para África".  

As notas são sucintas (c. de 30 pp.): introdução, bebidas cafreais, vinho para o ultramar. Os textos preenchem o resto do livro, são cerca de 130 páginas, constituídos por  documentação diversa dos finais do séc. XIX e princípios do séc. XX,  nomeadamente  recortes de imprensa sobre a exportação de vinho, relatórios administrativos,  regulamentos, mapas estatísticos, etc.  Seria fastidioso ver tudo isto em detalhe.
 
Do livro para já, interessa-me reter o título e fazer aqui um brincadeira, um trocadilho, para inaugurar uma nova série, onde fundamentalmente se fale dos vinhos que consumíamos na Guiné, o da Intendência  (a famosa "água de Lisboa" ) e os vinhos comerciais, de marca,  que chegavam à cantina, à messes e as restaurantes de Bissau, Bafatá e pouco mais.

Era conhecido, esse vinho que era exportado para África, pela designação pejorativa de "vinho para o preto" (termo que, de resto, já vinha de finais do séc. XIX). Tinha uma clara conotação racista.  Mas também era bebido pelo branco, a que chamávamos de segunda. Na época os colonos de África não eram propriamente a "fina flor da Nação"... 

O ponto central da argumentação do José Capela é que o "vinho para o preto" não era apenas um produto de exportação; ele tipificava e espelhava toda uma situação global de relações económicas coloniais, tendo  servido como um mecanismo de exploração e controlo da população africana.

A exportação deste vinho, muitas vezes de qualidade inferior (quando não mesmo uma "mixórdia") era crucial para absorver o excedente da produção vinícola portuguesa (então em crise), beneficiando com isso sobretudo a burguesia mercantil do Porto e a economia metropolitana. 

O livro enquadra esta prática nas transformações por que estava a passar a economia  portuguesa, com o desenvolvimento do capitalismo industrial.

O vinho colonial tornou-se um dos principais mecanismos de extração indireta de riqueza da população africana. O dinheiro que os trabalhadores africanos, nomeadamente os mineiros que iam para a África do Sul, obtinham com o seu trabalho,  era depois absorvido pelo comércio colonial através da venda deste vinho nas cantinas e tascas.

O José Capela aprofunda as consequências sociais e morais deste comércio, nomeadamente em Moçambique:

(i) degradação e alcoolismo: a imposição e o consumo massivo deste vinho teriam contribuído para a degradação física e moral da população local; o  autor liga o abuso do álcool introduzido pela Europa a problemas sociais graves, um tema já debatido em conferências internacionais como a de Berlim (1885);

(ii) supressão das bebidas locais (ou "cafreais"): o sistema colonial, para garantir o mercado para o vinho importado, frequentemente recorria a medidas repressivas, como a taxação das bebidas destiladas e fermentadas indígenas, a proibição e a destruição sistemática de alambiques familiares e artesanais, etc.,  de modo a tornar  praticamente obrigatório o consumo do vinho português;

(iii) contexto suburbano: o consumo deste vinho nos subúrbios das cidades africanas em expansão, em condições de insalubridade, é descrito como um reflexo das péssimas condições de vida e de trabalho impostas pelo sistema colonial.

Em resumo, "O Vinho para o Preto" é um pequeno ensaio de  análise histórica, mais próximo do "estudo de caso", que utiliza o comércio do vinho para ilustrar a perversão do sistema  económico colonial. Que no essencial se baseava na exportação de produtos manufaturados na Europa, com alto valor acrescentado, e a importação de matérias-primas, extraídas  pelos indígenas a baixo custo.

2. Num artigo do jornal "O Século", de 15 de janeiro de 1899, sobre a "exportação de vinhos", pode ler-se:

(...) Em vista da baixa geral que tem havido nos preços dos vinhos dos mercados brasileiros muitos viticultores nos têm pedido informações referentes à exportação  para Lourenço Marques.

Devidamente esclarecidos  podemos aconselhar que os vinhos tintos devem ir em barris de quinto ou décimo (*), ou engarrafados, quando bem límpidos, sem exagerada força alcoólica, 12 graus em média, não carregados de cor nem maduros.

Os vinhos verdes, os  de Colares e os claretes têm fácil colocação  em Lourenço  Marques e no Transval. 

Em quanto a vinhos brancos, os de mesa melhor é que vão engarrafados, assim como os vinhos generosos.

O vinho branco, denominado "para preto". tem larguíssimo consumo, e pena é que a escala alcoólica ou limites para tais vinhos ainda não esteja  resolvida, o que tem causado gravíssimos  prejuízos aos exportadores e, assim, aos viticultores. (...).

In: José Capela, "O vinho para o preto: notas e textos sobre a exportação do vinho para África". Porto: Afrontamento, 1973, pág. 61

Num outro recorte do jornal "O Século", de 21 de janeiro de 1899, lê-se:

(...) Uma casa comercial  de Lisboa, com sucursal  em Lourenço Marques, lembrou-se de aguardentar muito os vinhos brancos, elevando a graduação a 17 e 18 por cento de álcool, na esperança de que o preto preferisse este vinho à aguardente, sua bebida habitual.

Generalizou-se  tão bem entre a raça negra o vinho assim preparado de preferência à aguardente,  que, começando a exportação do vinho chamado "vinho para o preto" por algumas dezenas de barris,  já se eleva a milhares de barris por mês  (....) 

In: José Capela, "O vinho para o preto: notas e textos sobre a exportação do vinho para África". Porto: Afrontamento, 1973, pág. 64

3. A questão que se pode pôr, num blogue de antigos combatentes, que partilham memórias (e afetos), é a seguinte: afinal, o vinho que nos chegava à mesa, no mato, era ou não uma variante do "vinho pró preto", uma espécie de "vinho pró branco de 2ª.", os expedicionários e a pequena comunidade de colonos brancos e assimilados  ?

O mercado ultramarino continuou a ter  um papel importante no escoamento da nossa produção vinícola, até à descolonização. Recorde-se que havia, ao tempo da guerra colonial, um problema de excesso de produção (e falta de qualidade)...

Dizia-se que Salazar dizia que "beber vinho era dar de comer a um milhão de portugueses"... O que em parte era verdade: antes do êxodo rural nos anos 60, a vitivinicultura dava trabalho a um exército de mão de obra barata nas aldeias... Em 1940, a vinha ocupava mais de 320 mil hectares e havia cerca de 337 mil produtores!... (Em termos de exportação de produtos agrícolas, só a cortiça ultrapassava o vinho; recorde-se que a superfície de vinha atualmente é pouco mais de metade da existente em 1940, c. 175 mil hectares.)

De facto, o trabalho na vinha, até ao fim de meados de 1960,  ainda ocupava muitos trabalhadores ao longo do ano... A mordernização da agricultura comneça tarde no nosso país.  Recordo-me quando era puto, em meados dos anos 50, de assistir à vinda de enormes ranchos de trabalhadores sazonais, homens e mulheres, para a minha zona (Lourinhã, Estremadura), na altura das vindimas... Eram os "ratinhos", vinham da Beira!... Recordo-me de ver, nos anos 60,os primeiros motocultivadores...

Em resumo, seria interessante saber mais sobre o vinho que a "metrópole" (Lisboa) nos mandava... A tropa era um segmento de mercado precioso, a partir do início da guerra em Angola... 

O que é que a malta sabe mais sobre isto ?

Em boa verdade, a generalidade dos nossos camaradas, no TO da Guiné, não se podia dar ao luxo de dizer o provérbio popular: "pão que sobre, carne que baste e vinho que farte"... Muitas vezes, faltava o pão, a carne e o vinho... Em quantidade e qualidade... 

Mas também se diz que "a fome é a melhor cozinheira"... Passou-se fome e sede na Guiné, todos estamos de acordo...Mas ninguém morreu de fome... Já de sede, desidratação, houve seguramente casos,,,

Que fique claro: não estão aqui em causa os nossos camaradas da Intendência que deram o seu melhor (e alguns morreram) no cumprimento da missão que lhes cabia no TO da Guiné...


4. O 'colon' António Rosinha, que foi para Angola nos idos de 50 do séc. XX,  e que foi depois  "retornado" à força, pode ser apresentado, sem ofensa, como  "branco de 2ª"  (...e eu como preto de 1ª na nossa "Guiné... zinha"). Já levantou aqui uma questão engraçada sobre o vinhinho que ia para as nossas Áfricas, o tal "vinho para o preto", de que nos fala o José Capela, e que dá o mote para esta nova série. De qualquer modo, em vez da "água de Lisboa", ele já preferia a "Cuca" (como bom angolano que era e que queria continuar a ser em 1975):


Angola bebe Cuca desde 1947...
(Imagem: BUS Creative Agency,
com a devida  vénia...)

(...) O único vinho verde possível de encontrar nas colónias, nos anos 50, antes do grito" Para Angola rapidamente e em força",  era apenas o Casal Garcia, caríssimo, e só em alguns restaurantes mais para o fino.

Com a ida dos militares para a guerra, começou a aparecer o Gatão e outras marcas engarrafadas, porque até ali foi sempre vinho "embarrilado", barris de 100 litros, nunca azedava, milhões de litros, desaparecia todo.

Ninguém distinguia se era martelado ou não, ninguém se queixava à ASAE (devia ter outro nome).

Embora, no caso de Angola,  a bebida nacional fosse a cerveja. A CUCA promovia 
frequentes mini Oktoberfest memoráveis para quem tomava parte. (...)  (**)


A história da Cuca remonta a1947, o ano dea fundação da Companhia União de Cervejas de Angola (CUCA), uma filial da Central de Cervejas, dona da marca Sagres. A Cuca foi a primeira cerveja produzida industrialmente em Angola. O nome seria uma homenagem à serpente Cuca, presente em tradições africanas, O  logotipo da marca  é um pássaro, simboliza a paz. A Cuca  tornou-se um "ícone cultural angolano (sic),  mas agora nas mãos da multinacional francesa Castel...  Todavia,   é paradoxal:  é mais barata a uma garrafa de cerveja (200 kwanzas) do que uma garrafa de água.. 

Curioso: uma marca colonial que os "tugas" lá deixaram... Outras duas cervejas de origem angolana são a Eka e Nocal.

Em suma,  o assunto parece que dá "pano para mangas", neste caso, garrafas e garrafas de vinho e cerveja, pires de tremoços  e muito paleio... Esperemos que  os leitores nos mandem os seus  contributos para esta nova série, que é uma variante da série "Comes & Bebes"... e do "Humor de caserna".  Que não nos falte, ao menos, o vinho, a cerveja e os tremoços.. E o humor. Sobretudo o humor.

_______________

Notas do editor LG:

(*) Um barril de quinto ou décimo era 1/5 ou 1/10 de uma pipa. Um recipiente mais pequeno que facilitava  o manuseio, o transporte em navio, a descarga, etc., nomeadamente com destino para o Brasil e África.  A pipa-padrão, na época, era a da Norte  do País (Porto, Douro), equivalente a 525/550 litros. Um barril de quinto ou décimo  seria, pois, c. 100 litros ou 50 litros, respetivamente.

(**) Vd. comentário ao poste de 3 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27280: Manuscrito(s) (Luís Graça) (274): Vindimas, ainda são o que eram ? - Em Candoz, sim, no essencial - II (e última) Parte

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27303: A nossa guerra em números (39): E os "retornados" de outros impérios coloniais (França, Holanda, Grã-Bretanha, etc.) quantos foram ?


Bandeira da França, "vandalizada" com o emblema representativos dos "pieds-noirs" da Argélia.   Imagem do domínio público

Fobte: Cortesia de Wikimedia Commons



1. O "boneco" do nosso António Rosinha (*), "tuga", "colon", "retornado", leva-nos a fazer a seguinte pergunta: quantos "retornados" houve, no séc. XX, nos outros países europeus, para além de Portugal, com colónias ou protetorados que acederam à independência política ?  Casos nomeadamente da França, da Holanda, Grão-Bretanha...

Como termo de comparação, partimos da estimativa mais consensual do total geral de “retornados” (1974/76), oriundos de Angola e Moçambique: c. 500 mil / 520 mil pessoas.

Aproximadamente menos de 2/3 vieram de Angola, e pouco mais de 1/3 de Moçambique; das restantes colónias (Cabo Verde, Guiné, São Tomé) os números são residuais (**).


O caso mais notório seria, de entre os colonizadores europeus, o da França, que manteve na Argélia uma guerra prolongada e violentíssima, entre 1954 e 1962. 


 Tal como de resto não o é o termo "retornado" entre nós: de facto, havia  portugueses,  cabo-verdianos, guineenses, angolanos, moçambicanos,  goeses, e até chineses, etc., nascidos em África e para quem Portugal era o "Puto",  um país europeu, estrangeiro, distante, física, cultural e afetivamente. 

De facto, havia quem tivesse nascido em Angola ou Moçambique, de pais, avós e até bisavós oriundos de Portugal, continental e ilhas atlânticas (Madeira, Açores, Cabo-Verde) mas também de outras proveniências, e que se consideravam, a si próprios, depreciativamente, como "portugueses de 2ª"

 Em todo o caso, vinham cá de férias ou de licença graciosa ( os funcionários públicos),  vinham cá consultar o médico, ou estudar cá, etc. A universidade só tardiamente chegou a Luanda,  Nova Lisboa, Lourenço Marques... A formação das elites tinha que ter o "carimbo" de Lisboa...

Esses angolanos e moçambicanos não aceitavam ser tratados como "retornados".  Mas o "Puto" acabou por ser felizmente uma pátria de acolhimento para eles. Seriam hoje apátridas. É verdade que nem todos viajar para a antiga metrópole. Não sabemos quantos foram para  o Brasil, a África do Sul, a Venezuela...
 

A. Quantos foram os "pieds-noirs" que  sairam da Argélia, com a independência em 1962 ? (***)


É arriscado avançar com números, por causa das fontes, das metodologias, dos enviesamentos, etc.  Mas os números são necessários para termos uma noção mais aproximada das realidades complexas. É verdade que também servem para mentir, ocultar, branquear, etc.

A assistente de IA que rapa o tacho aqui e acolá, vasculha o lixo da Net, não tem espírito crítico nem muito menos empatia e compaixão, assim de rajada diz-nos logo que os "pieds-noirs" terão sido entre 650 mil e  1 milhão.  

Pés-negros ? Parece ter um sentido pejorativo, tal como "tuga" (no tempo da guerra colonial).. O nosso "retornado", apesar de tudo, parece ser mais "neutro", mas não é menos impreciso e redutor... A língua tem sempre estas limitações, e a realidade é sempre mais dinâmica, espessa e complexa.

Entenda-se: "pieds-noirs" = colonos europeus, principalmente franceses, que  saíram da Argélia após a independência em 1962, buscando refúgio sobretudo na França. 

Mesmo o termo "colono"  é impreciso: o missionário, o professor, o topógrafo, o médico,  etc., são colonos ?

O número exato varia conforme a fonte:

(i) vários relatos históricos estabelecem que cerca de 800 mil foram evacuados para França e aproximadamente 200 mil  permaneceram temporariamente na Argélia, sendo que o número dos que permaneceram foi se reduzindo rapidamente; 

(ii) algumas fontes falam em “quase 1 milhão” de refugiados (outro termo que também não é "neutro");

(iii) registros administrativos (de 1962)  apontam para  cerca de 650 mil a  680 mil os recém-chegados à França só nesse ano;

(iv) considerando também os judeus argelinos (alguns, seguramente sefarditas, de origem ibérica, c. 130 mil), bem como outros europeus, estima-se que até 1.050.000 pessoas de origem europeia viviam na Argélia no início da década de 1960; 

(v) sabe-se que a esmagadora maioria partiu com a independência, depois de uma guerra que foi uma tragédia.

O êxodo ocorreu de forma acelerada, em poucos meses, tal como em Angola e Moçambique, fruto do temor de represálias e das mudanças políticas, económicas e sociais radicais após o fim do domínio francês.

Claro que a saída dos "pieds-noirs" teve profundas consequências sociais e políticas tanto na Argélia como na França, marcando o pós-colonialismo no Mediterrâneo ocidental.


B. Quanto a holandeses (ou neerlandeses, como se diz hoje), saídos das ex-colónias dos Países Baixos...

O número de "retornados holandeses"  variaram bastante conforme o contexto histórico de cada território. 

Não houve um êxodo tão em massa e tão concentrado como no caso dos "pieds-noirs" da Argélia, nem do "ultramar português" (Angola, Moçambique...).

 Vejamos caso a caso:

(i) Índias Orientais Holandesas (Indonésia)

após a independência (1949), cerca de 300 /350  mil "colonos" emigraram para a Holanda entre as décadas de 1940 e 1960; mas nesse número não estão  apenas holandeses "puros" (de sangue),  mas também mestiços euro-asiáticos (os chamados "indos"), judeus, chineses e outros grupos ligados à administração colonial; os tais "indos " que migraram para a Holanda, serão estimados em 200 mil;

(ii) Suriname: 

com a independência em 1975,  quase metade da população original (estimada entre 100/150 mil pessoas) mudou-se para a Holanda, numa corrida migratória antes do encerramento das fronteiras (foram sobretudo descendentes de holandeses e outros grupos ligados à administração colonial);

(iii) Antilhas Holandesas: 

houve um  fluxo menor, mas constante, das ex-colónias caribenhas (Curaçao, Aruba, Sint Maarten) para a Holanda, especialmente em contextos de crise, totalizando hoje cerca de 200 mil descendentes de caribenhos holandeses  a viver  nos Países Baixos;

(iv) África do Sul: 

após o fim da dominação holandesa no Cabo (1815), muitos dos bóeres (palavra de origem neerlandesa, quer dizer isso mesmo, colono, descendente de holandeses) permaneceram na região e formaram comunidades que deram origem aos atuais africâneres; neste caso,  não houve uma saída massiva para a Holanda.

Mais especificamente os africâneres 
são um grupo étnico  sul-africano descendente de colonos, protestantes calvinistas,  europeus, principalmente holandeses, alemães e franceses (huguenotes), que chegaram ao Cabo da Boa Esperança a partir do século XVII. 

Eles falam africâner, uma língua germânica, que evoluiu do dialeto holandês dessa época;  desempenharam um papel central na história da África do Sul, incluindo o regime do apartheid (que vigorou de 1948 a 1994); historicamente, eles dominavam  setores como a política, o comércio  e a agricultura, mas a minoria branca, incluindo os africâneres,  é hoje uma pequena percentagem da população. 

Em resumo: a saída dos holandeses das ex-colónias foi significativa na Indonésia (após 1949) e em Suriname (após 1975), mas comparativamente menos dramática que a dos "pieds-noirs" na Argélia. ou das colónias / províncias ultramarinas portuguesas (há quem não goste do termo "colónias),

A diáspora holandesa mundial contemporânea reflete essas migrações, com estimativa de até 15 milhões de pessoas de origem holandesa/neerlandesa e seus descendentes vivendo fora da Holanda, incluindo grandes comunidades vindas das antigas colónias.  

C. Quanto aos britânicos, não há um número consolidado ou uma estimativa global de “retornados”, na sequência  das várias independências dos territórios do império onde o sol nunca se punha no tempo da Raínha Vitória...

Os retornos existiram, mas dispersos, com destaque para expulsões pontuais (ex: Uganda, 1972,  cerca de 27.000).

O fenómeno é amplamente documentado no caso português, mas não tem equivalente em escala ou identificação no caso britânico.


D. Os espanhóis, por sua vez,  não tiveram um fenómeno de "retornados" semelhante ao caso português.

A descolonização espanhola  (grande potência imperial) ocorreu maioritariamente nas Américas no século XIX, com processos de independência que resultaram na formação de vários países novos entre 1810 e 1824, e não no século XX como nos impérios britânico, francês ou português; esses processos de independência foram guerras e movimentos políticos e sociais que levaram à saída da Espanha das colónias americanas, mas não provocaram um retorno em massa de colonos espanhóis para a Espanha equivalente ao nosso caso no pós-25 de Abril.

Ainda há os casos residuais dos italianos, alemães, belgas... E até dos suecos, que, ao que parece,  também tiveram colónias.

(Pesquisa: LG + Assistente de IA / Perplexity, ChatGPT, Gemini...)

(Condensação, revisão / fixação de texto: LG)

____________________

Notas do editor LG:

(*) Vd. poste de 6 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27288: Humor de caserna (214): O dono daquilo tudo, do Cuanza ao Cunene, o "colón", o retornado", o "coronel" e o "grão-tabanqueiro" António Rosinha

(**) Vd. poste de 12 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27113: A nossa guerra em números (31): Angola e Moçambique: População europeia total: ~535 mil / 600 mil | Total geral de "retornados" (incluindo os restantes territórios): c. 500 mil / 520 mil pessoas

(***) Último poste da série > 7 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27191: A nossa guerra em números (38): Em 27 de maio de 1974, existiriam no CTIG 1960 "bombas de napalm" (1170 de 350 litros e 790 de 100 litros)... ou apenas os invólucros

segunda-feira, 6 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27288: Humor de caserna (214): O dono daquilo tudo, do Cuanza ao Cunene, o "colón", o retornado", o "coronel" e o "grão-tabanqueiro" António Rosinha

 


Infografia: LG | Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné | Assistente de IA/ChatGPT (2025)




1. António Rosinha, o "nosso mais velho", "colon" em Angola (desde os anos 50, fugindo da miséria da sua aldeia nas Beiras); fez em Angola a tropa e não viu a guerra, em 1961/62; "retornado" em 1975, os seus caixotes vieram parar a Lisboa, Belém; emigrante no Brasil, cooperante na Guiné-Bissau (como topógrafo da TECNIL, em 1987/93), é um dos últimos  "africanistas"; membro do nosso blogue, Luís Graça & Camaradas da Guiné; membro da Tabanca Grande desde 2006; tem um olhar irónico, bem humorado, sobre o passado colonial, o "Botas", e os estudantes do Império, que irão ser depois os donos das colónias do último império do mundo.

Pedi à assistente de IA / ChatGPT que nos fizesse uma ilustração para um comentário recente dele, sobre os "retornados" (*).

O Rosinha comentara uma foto conhecida, de 1975, de um fotojornalista estrangeiro, de uma agência internacional  (que nunca cá mais pôs os pés, mas em 1975 Portugal ainda estava na moda...) com os "caixotes dos retornados", os. "cacos do império"  junto ao "icónico monumento aos Descobrimentos", em Lisboa, Belém.

O  tom do comentário do Rosinha é brincalhão, irónico, pícaro, que ele nada tem de provocador, panfletário, reacionário, saudosista, e muito menos de colonialista, racista, e outros epítetos que os "tugas" gostam de usar como "armas de arremesso" uns contra os outros, quando a seleção nacional de futebol perde contra uns "ba(r)damecos" do antigo bloco da  Europa de  Leste.

(...) " Lá estava o meu caixote junto ao monumento dos Descobrimentos. Lugar mais apropriado não havia, devem ter ido parar lá, só para a fotografia. 

"Trouxemos nos caixotes tudo o que havia à mão, não deixámos nada para o MPLA e os outros. 

"Nos caixotes dos retornados de Angola, trazíamos grandes riquezas, não deixamos lá quase nada, desde diamantes, ferro e manganês e petróleo. 

"Não sobrou nada para os filhos e filhas de Savimbi, Holden Roberto, Neto, Eduardo dos Santos. Consta que é habitual ver descendentes dessa gente e de vários coronéis, de mão estendida à caridade, na Avenida da Liberdade em Lisboa, em Cascais, e consta que até em Barcelona e até em Dubai. 

"Os retornados foram muito malandros, onde teriam ido buscar o seu ADN? Deve ter sido uma selecção especial e rara do génio de Salazar. Ainda bem que foram desmascarados, e não foram comidos pelos 'tubarões' porque, afinal, sabiam nadar". (*) 

2. Minha querida assistente de IA (a IA é feminina e a assistente também): eu sei que tu queres que eu faça um "upgrade" da tua IA, a tua "menina dos olhos", a tua "coqueluche"... Mas, olha, agora não me dá jeito nenhum gastar mais "patacão" contigo... Podes vir a tornar-te uma amante cara e eu já não tenho vinte anos nem "graveto" para sustentar os teus caprichos... Por enquanto, a gente ainda se entende, apesar das rasteiras que me passas e das "galgas" que me enfias, quando te pões a delirar.

(...) Mando-te também uma foto do Rosinha , na tropa, a marchar, de óculos escuros e pistola-metralhadora, FBP, na marginal de Luanda. Para sorte dele nunca deu um tiro (nem levou).

Profissionalmente foi topógrafo. É um grande ser humano e é muito querido na nossa tertúlia bloguística. Já está na casa dos 80 e tal  (faz as contas: em 1961 era furriel, agora já deve ser coronel, na situação de reforma). 

Queríamos homenageá-lo. Por tudo, e também pela sua existência, persistência, resiliência, coerência, elegância no confronto de ideias e  opiniões, sabedoria, inteligência emocional, mas também lealdade, dedicação, pachorra, etc,. que tem mostrado em relação ao nosso blogue, onde tem cerca de 160 referências e um sem número (centenas) de comentários (que só aparecem na montra traseira do blogue). (**)

Olha, eu que sou um dos editores do blogue com direito a "lápis azul" (leia-se: "moderador"), devo confessar-te que nunca cortei um comentário dele: o que é espantoso... É uma pessoa que "sabe-ser e sabe-estar". E isso é  o que mais me encanta nos seres humanos (que eu distingo dos bichos-homens).

Agora aí vai o meu pedido: podes fazer-me um "cartoon" (cartum, em português europeu), uma tira de banda desenhada, enfim, um "boneco", engraçado, a partir das 3 fotos que te enviei, e do curriculum resumido do meu/nosso amigo e camarada de armas  ?... A última foto dele é de 2007, tirada no nosso encontro nacional, em Pombal. Tenho poucas fotos dele (**).

3. O "boneco" que saiu, da cabeça do "Sabe-Tudo" e da caneta do "Faz-Tudo", espero que consiga  surpreender o nosso Rosinha, o nosso "colon",o nosso  "retornado" de estimação,  o nosso "mais velho" (ou um dos "nossos mais velhos"), sempre ativo, proativo, interveniente,  e que trouxe consigo o melhor de África, as pequenas histórias e as felizes memórias das suas gentes e paisagens, das cabindas aos sobas, sem esquecer os estudantes do Império e o "Botas" (que nunca lá os pés, no Império, nem apanhou o paludismo), tudo rapazes da geração dele, os estudantes, não o professor.., 

Só faltam os cheiros de África, mas por  enquanto ainda não conseguimos reproduzir os cheiros... ou exportar os cheiros usando a IA...

Espero  que este miminho meu, da Tabanca Grande e da atrevida assistente de IA / ChatGTP te  ajude, Rosinha,  a alegrar o  teu dia-a-dia. Sabemos afinal pouco sobre ti, o teu quotidiano, a tua saúde... Nem o teu número de telemóvel temos...

Tu és a discrição em pessoa: não és de chorar, fazer birras, cenas, greves, manifs,  etc. Não és "carroceiro", demagogo, populista, mentiroso compulsivo, fabricador de notícias falsas, etc., coisas que hoje em dia até é chique ser ou parecer ser.  Julgo que tu não vives longe de mim, no Oeste estremenho, lá para os lados de Vila Franca de Xira (?), junto de filhos, netos e bisnetos (que deves ter,  para espalhar o teu ADN)...

Olha, saúde e longa vida para ti, que tu mereces tudo, incluindo tudo (ou quase tudo) o que tu "roubaste" aos angolanos, e que trouxeste para Lisboa, em 1975, em gigantescos contentores, mas também em caixotes e malas de cartão:  diamantes, ferro, manganês, petróleo, café, pau preto, máscaras, missangas, marfim, obras de arte, mulatas, cabritas, cabindas, impalas, palancas, etc. (e até, dizem,  o caminho de ferro de Benguela, desmontado)...

Ainda quiseste  trazer o resto do  pouco que sobrava, do Cuanza ao Cunene, mas já não tinhas caixotes em número suficiente. Nem navios da nossa gloriosa marinha mercante. Em 1975, tudo o vento levou... 

E, depois, quando foste para a Guiné, então aí é que já não havia mesmo nada para "roubar"...Farto de caju e ostras de Quinhamel, decidiste regressar ao "Puto" em 1993. E eu acho que  fizeste bem. Afinal, és e sempre serás um "retornado". Um bom filho à casa (re)torna. (***)

PS - Olha, não fui eu que te promovi a "coronel", foi a minha assistente de IA que tem uma imaginação levada da breca. Eu até tenho medo de lhe perguntar mais coisas sobre ti... Por hoje já chega, tenho que ir descansar...

_________________


Notas do editor LG:

(*) 3 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27283: Agenda cultural (904): Continuação da minha visita em 21 de setembro à exposição “Venham mais cinco, o olhar estrangeiro sobre a revolução portuguesa, 1974-1975”. Para ver até 23 de Novembro de 2025, no Parque Tecnológico da Mutela, Almada (Mário Beja Santos)

(**) Vd. poste de 18 de janeiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25083: O segredo de... (41): António Rosinha (ex-fur mil, Angola, 1961/62; topógrafo da TECNIL, Bissau, 1987/1993): Luís Cabral, a camarada Milanka, eu e o 'mau agoiro' do meu patrão

quarta-feira, 1 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27273: S(C)em Comentários (78): Na Guerra (tal como na Política) Não Vale Tudo... (António Rosinha / Cherno Baldé / Luís Graça)

Duke Djassi, nome de guerra
 de Leopoldo Alfama (1945-2025),
à esquerda.
Cortesia: Casa Comum /
Arquivo Amílcar Cabar


São comentários ao poste P27267 (*)

(i) Antº Rosinha


Só entre a jangada de João Landim e Bula, encontram-se naquelas redondezas treze pontas, e provavelmente a maioria seriam de cabo-verdianos.

E até se poderá dizer que pelo resto da Guiné seria assim já desde Honório Barreto, até Amilcar Cabral e o herdeiro da Ponta Alfama terem as suas ideias da União/Junção/Anexação Guiné-Cabo Verde.

O mapa de Bula onde vemos essas pontas, é de 1953, ora nessa data já a pacificação da Guiné e das outras colónias portuguesas viviam numa paz e numa calma que até iludiu os estudantes do império que era facílimo governar aquilo mais e melhor por eles do que pelos atrasados dos portugueses.

E de facto o ex-guerrilheiro Alfama ainda chegou a governante, na Guiné, mas só até 1980, pois deve ter acompanhado Luís Cabral que também "desistiu" em 1980.

Mas talvez tenham sido eles
que ajudaram a garantir que aquele arquipélago, Cabo Verde,  iria figurar como país com fronteiras e bandeira própria.

terça-feira, 30 de setembro de 2025 às 00:28:00 WEST


(ii) Tabanca Grande Luís Graça
.

Rosinha, acabei de escrever noutro poste, o do Armando Fonseca, sobre o "início da guerra"... Deixa-me completar o teu oportuno comentário...

A CECA (Comissão de Estudo para as Campanhas de África) tal como a historiografia (ou "hagiografia"...) do PAIGC têm a mesma narrativa: o início da guerra na Guiné foi em Tite, em 23 de janeiro de1963. Ponto final parágrafo.

Nós, no blogue, achamos que não. A avaliar pelos textos que se têm publicado ao longo destes anos todos... Antes dos primeiros tiros contra os quartéis e os militares. há toda uma violência (já armada), sob a forma de terror (e contraterror), que incendeia o "capim da Guiné"...

Basta olhar para as cartas da Guiné, anteriores à 1963: inúmeras tabancas e "pontas" desapareceram, a partir do início da "subversão" (para as NT) ou da "libertação" (para o PAIGC)...

Os "libertadores" começaram por usar a cenoura e o chicote para mobilizar (ou "arregimentar") os chefes tradicionais e as suas populações. Não temos, ainda hoje, uma noção exata da dimensão da violência, de um lado e do outro...

A "desertificação" do interior da Guiné, que data do início da década de 1960, começa com:

 (i) campanhas de aliciamento;
 (ii) ações de intimidação;
 (iii) assassinatos seletivos;
 (iv) destruição de infraestruturas (linhas telefónicas, pontões, corte de árvores nas estradas, etc.); 
(v) desmantelamento da administração (administradores, chefes de posto, cipaios) e da economia (pontas, casas comerciais, etc.).

A guerra é a violência armada e organizada: e quando se começa não há semáforos, a não ser "verdes" (levando à escalada da violência)...Não há semáforos vermelhos nem amarelos...

Os cabo-verdianos, ou guineenses de origem cabo-verdiana, donos de muitas pontas, mas também de casas comerciais (a par dos libaneses, dos portugueses europeus, que os cabo-verdianos também eram portugueses...) acabaram por ser vítimas da violência do PAIGC: os Semedos, os Brandões, os Alfama, etc. não tiveram pejo em inviabilizar as explorações agrícolas dos pais (ou as casas comerciais)...

No sector L1 (Bambadinca), que eu conheci melhor, havia também bastantes pontas (uma ou outra eu frequentei, em Contuboel, em Bambadinca, a Ponta Brandão, por exemplo)...  (Na carta de Bambadinca, que é de 1955, contei 8 pontas, ao longo do rio Geba Estreito.)

Está por fazer a história das pontas e do seu trágico destino... Bem como das casas comerciais (a do Rodrigo Rendeiro e de tantos outros...).

Pior ainda: está por fazer a histórias das tabancas que foram, logo muito cedo, vítimas da violência do PAIGC e nas NT, no tempo em que se praticou a política de terra queimada.

terça-feira, 30 de setembro de 2025 às 10:52:00 WEST

(iv) Tabanca Grande Luís Graça

Todos sabemos que a violência gera violência... A História está infelizmente cheia de exemplos desses.

A exploração e os maus tratos contra os balantas e outras populações na Guiné Portuguesa foram também o capim a que o PAIGC deitou fogo... Temos exemplos concretos das formas de exploração dos comerciantes locais (cabo-verdianos, brancos, libaneses...) e dos abusos da administração colonial de que foram vítimas os balantas e outros...

Os balantas vão ser depois a "carne para canhão" do PAIGC. Juntamente com os biafadas terão sido os mais "fáceis" de mobilizar (a bem ou a mal) para a "luta de libertação"... a par dos grumetes de Bissau, acrescenta o Cherno Baldé.

À maior parte de nós, militares, metidos nos seus quartéis e destacamentos, ou empenhados em desgastantes operações no mato, escapavam estas práticas de "violência" dos comerciantes, dos chefes de posto, dos cipaios... Por outro lado, já estivemos na Guiné, com o António Spínola, que durante o seu "consulado (meados de 1968/ meados de 1973) procurou "moralizar" e "reprimir" muitas das práticas coloniais que serviram de "rastilho" para o PAIGC incendiar o capim...

Tarde e a más horas, a política " Por uma Guiné  Melhor" ? É verdade. Mas fica para História: as Forças Armadas Portuguesas também tiveram uma palavra a dizer...

terça-feira, 30 de setembro de 2025 às 11:14:00 WEST


(iv) Tabanca Grande Luís Graça .

O Duke Djassi já morreu, há dias, em Portugal, num hospital do nosso SNS... Paz à sua alma (mesmo que eu não seja crente)... Respeito os mortos, a sua memória, seja quem for, mas temos que reconhecer que o "comandante Duke Djassi" ficou mal na fotografia...

Na guerra não vale tudo. Como na política. 

A sua mensagem de 1/8/1971 chamar-se-ia hoje "fake news", um notícia falsa...Os cinco mortos "tugas", na mina montada pelo "camarada" Raul Nhaga, na estrada de São Domingos para a fronteira, são deliberadamente uma mentira... Ninguém contou os mortos (5) nem muito menos os feridos (12)...

É pena que o Amílcar Cabral nunca tivesse combatido a mentira compulsiva dos seus comandantes e comissários políticos... Como é que eles depois poderiam falar olhos nos olhos ao "povo" ? 

"A verdade queima, camarada"...

terça-feira, 30 de setembro de 2025 às 14:36:00 WEST



(v) Cherno Baldé


O Antº Rosinha devia escrever um livro para a posteridade, pois, para mim e muitos leitores/seguidores do Blogue, as suas palavras sobre a realidade dos povos das colónias e, sobretudo, o inicio da luta nestes territórios, ajudaram e entender melhor sobre as origens, protagonistas e motivações iniciais das guerras de subversão.

Na Guiné, as elites cabo-verdianas ou de origem cabo-verdiana, mais ligadas ao regime colonial e melhor esclarecidas, aproveitando os ventos da história, quiseram desmantelar o regime, correr com os portugueses e dominar o resto da população.

Os chefes fulas, desconfiados por natureza, nunca se deixaram enganar e pagaram por isso, mais tarde; entretanto, os grumetes, guineenses,  estavam à espreita e o 14 de Novembro de 1980 que seria uma espécie de continuação da conspiração de Conacri (20 de Janeiro 1973) serviu, por sua vez, para se livrarem dos cabo-verdianos que, de facto, lideravam o PAIGC.


(Seleção, revisão / fixação de texto, título: LG) (**)

______________________

Notas do editor LG:

(*) Vd, poste de 29 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27267: PAIGC: quem foi quem ? (15): Leopoldo Alfama (Duke Djassi) (1945-2025), comissário político em 1974, governador da região do Cacheu até 1980; o pai era era o dono da Ponta Alfama, perto de Bula

(**) Último poste da série > 20 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27233: S(C)em Comentários (77): "E para que queres tu a independência se nem medicamentos tens para uma dor de barriga ?"

sábado, 20 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27233: S(C)em Comentários (77): "E para que queres tu a independência se nem medicamentos tens para uma dor de barriga ?"


"Para que queres tu a independência se nem medicamentos tens para uma dor de barriga ?"... Uma pergunta que o pai do Cherno Baldé gostaria de ter feito, ao Amílcar Cabral, se ele fosse vivo, em setembro de 1974, em Fajonquito... Afinal, perguntar não ofende...

Foto do histórico fundador, secretário geral, líder, estratega e ideólogo do PAIGC, Amílcar Cabral (1924-1973), incluída em O Nosso Livro de Leitura da 2ª Classe, editado pelos Serviços de Instrução do PAIGC - Regiões Libertadas da Guiné (sic). Tem o seguinte copyright: © 1970 PAIGC - Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde. Sede: Bissau (sic)... Impresso em Östervåla, Uppsala, Suécia, em 1970, na tipografia Tofters / Wretmans Boktryckeri AB.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2025)

1. Seleção de comentários ao poste P27277 (*)

(i) João Crisóstomo, Nova Iorque

Quantas vezes também eu tenho pensado nisto! E agora ao ler este post só me dá ganas para berrar e chorar. Os que ainda cá estamos, “sobreviventes” que todos somos, temos de saber encontrar força e coragem, até para como sugere o Abílio Magro “prestar uma sentida homenagem a todos os Djassis da Guiné-Bissau”. Não sei se me é possível fazê-lo presencialmente , mas pelo menos virtualmente e de qualquer maneira achada pertinente, é de alma e coração que me associo a este projecto.
João Crisóstomo, Nova Iorque

quinta-feira, 18 de setembro de 2025 às 05:11:00 WEST 


(ii) Tabanca Grande Luís Graça

Reconheço a cara deste "puto" da foto (era um "djubi", como tantos outros!), que foi soldado da da CCAÇ 2590/CCAÇ 12, e que andou comigo no mato, em inúmeras operações... Foi fotografado para a "eternidade" pelo meu amigo e camarada "inesquecível", o Renato Monteiro, grande fotógrafo (viria a revelar-se muito tarde!)...

Pois é, dpois da independência, a Guiné-Bissau tornou-se demasiado pequena e asfixiante para poder "esconder" dos seus "inimigos" os antigos militares e milícias que estiveram ao lado das tropas portuguesas numa guerra que, para todos os efeitos, foi uma "guerra civil": mais de 15 mil guineeenses, de todas as etnias, lutaram de armas na mão contra o PAIGC, cujos efetivos, dentro do território, seriam 3 ou 4 vezes inferiores...

Em agosto de 1974 foram todos desarmados, as suas unidades extintas, e voltaram à sua condição de "paisanos"... O exército pagou-lhes o soldo até ao fim do ano. A partir de meados de 1974, começou o seu pesadelo... Muitos "emigraram" para países vizinhos, alguns com sorte conseguiram alcançar Portugal... Enfim, nada que não se tenha visto noutras guerras, noutros cenários (da Argélia ao Vietname)...

Mas é evidente que os negociadores da paz, do lado de Portugal, foram "ingénuos" ou "cínicos": toda a gente sabia que não haveria quaisquer garantias, legais e sobretudo efetivas, contra a ameaça de represálias e sobretudo contra a "caixinhina de Pandora" dos ódios tribais...

O que terá acontecido ao pobre do "ordenança" Djassi desta história ? Tinha o mesmo apelido do "nome de guerra" de Amílcar Cabral, Abel Djassi... De pouco lhe valeria...

quinta-feira, 18 de setembro de 2025 às 09:13:00 WEST 


(iii) Antº Rosinha: 

(...) "Exigia-me explicações que eu não lhe podia dar."

Não eram apenas os tropas africanos que viram o que vinha lá, que sentiam o abandono nas mãos de irresponsáveis, os civis também das três frentes todos viram o mesmo, e chegavam a perguntar:  "Vão embora porquê?".

Eles sabiam que iam ser gerações de africanos que deixavam de contar, em favor de umas dezenas de "salvadores da pátria".

Hoje milhões de africanos que vêm pedir essas explicações pela Europa toda.

A África subsariana continua a pedir explicações a toda a Europa de norte a sul.

Quem tem menos explicações para dar a todos os "Djassis", de todos os pa~ises europeus, é Portugal.


quinta-feira, 18 de setembro de 2025 às 12:45:00 WEST 


(iv) Cherno Baldé:

Eventualmente, o Djassi (apelido) teria algumas dificuldades em esconder a sua condiço de "exemplar militar portugues" devido as marcas que transportava no corpo e na sua alma de operacional que foi nas duras matas da guerra da Guiné, mas isso dependeria da sua capacidade de adaptação a nova realidade que, à partida, podia não lhe ser t~~ao adversa, pois que os biafadas (seu grupo étnico) estava bem representado dentro das forças do PAIGC, assim como estavam os balantas e os grumetes de Bissau que, normalmente,  constituiam os núcleos das chefias entre os guerrilheiros. 

Excetuando o caso de elementos dos comandos e fuzileiros bem conhecidos, muitos ex-soldados do recrutamento local conseguiram passar incólumes durante esta difíil fase de purgas e fuzilamentos indiscriminados. 

Aqueles que, de facto, estavam na mira e com poucas hipõteses de escapar,  eram claramente os fulas que já estavam politicamente marcados com uma cruz nos discursos de Amílcar Cabral e outros dirigentes durante a luta e que depois só restava aplicar na prática o consenso gerado â volta desse grupo de "colaboradores" que tinha ousado desafiar as ideias do Partido e se posicionara a favor dos portugueses. 

O Aladje Mané (biafada de Bafatã) tinha sido um eminente membro da ANP (Acção Nacional Popular) e dos congressos do povo do gen Spinola, mas foi recuperado e viria a ser um influente membro do partido "libertador"; o Cadogo Junior, ex-sargento do exército português,  foi, mais tarde, presidente do PAIGC e primeiro ministro do país... Enfim houve muitos que, através dos laços de amizades, de parentesco ou outras vias,  conseguiram fazer a travessia sem sofrer consequências negativas.

 PS - O paradoxo de tudo isso é que, hoje em dia, mesmo os mais ferrenhos nacionalistas, inclusive os antigos combatentes do PAIGC,  sabem que talvez o futuro da Guiné fosse muito diferente se não tivesse havido aquela guerra que devastou o país e destruiu tudo o que podia ser aproveitado para dar um rumo melhor ao país, pois hoje sabemos que a independência só  por si não é uma panaceia e os milagres só acontecem nas narrativas bílicas.

H poucos dias anunciaram o falecimento em Lisboa (no Hospital Amadora-Sintra) de um antigo guerrilheiro do PAOIGV, o Leopoldo Alfama, mais conhecido por Duque Djassi (nome de guerra). Antes dele, muitos outros ja tinham feito o mesmo percurso, incluindo Luís Cabral. E a questão que deveriamos fazer é:  e porque serviu toda aquela mortífera guerra se nem sequer podemos fazer funcionar um SNS (Seerviço Nacional de Saúde) em condições ? 

Lembro-me da questão que o meu falecido pai tinha colocado aos guerrilheiros que ocuparam o quartel em 1974 apõs a partida da última companhia da tropa portuguesa de Fajonquito:
 
- E para que  querem a independência se nem sequer têm medicamentos para a dor de barriga ? (**)
 

quinta-feira, 18 de setembro de 2025 às 14:58:00 WEST 

(Revisão / fixação de texto: LG)
__________________

Notas do editor LG:

segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27174: Felizmente que ainda há verão em 2025 (29): Olha que não, Rosinha, olha que não... Sempre houve incêndios florestais no Portugal Mediterrânico... Mas há quem proponha que se corte as mãos aos incendiários...


edição de 9 de setembro de 1966. Reportagem de Joaquim Letria e Pedro Rafael Santos


1. Trágica efeméride: d
aqui a dias cumprem-se 59 anos sobre o incêndio que devastou 5 mil hectares (cerca de um terço da área plantada)  na Serra de Sintra e causou a morte a 25 militares do Regimento de Artilharia Antiaérea Fixa de Queluz.

Cinco mil hectares. Esta foi a área aproximada que ardeu no trágico incêndio que deflagrou na Serra de Sintra em setembro de 1966, um dos maiores e mais devastadores incêndios florestais da história da região.

O fogo, que teve início a 6 de setembro de 1966, lavrou durante vários dias, consumindo uma vasta mancha florestal, estimada em cerca de um terço da área arborizada da serra na altura. As chamas, impulsionadas por ventos fortes, alastraram rapidamente, ameaçando a vila de Sintra e marcos históricos e naturais.

Para além da imensa perda a nível de património natural, o incêndio de 1966 na Serra de Sintra ficou marcado, para sempre,  pela morte de 25 militares do Regimento de Artilharia Antiaérea Fixa de Queluz, que perderam a vida enquanto combatiam as chamas.

A tragédia teve um profundo impacto no país e levou a uma maior consciencialização sobre a necessidade de prevenção e combate a incêndios florestais em Portugal.

2. Disse o Fernando Ribeiro, em comentário ao poste P27166(*):

Antº Rosinha, em Portugal sempre existiram incêndios e sempre existirão, porque são uma forma de a Natureza se renovar. Não há volta a dar-lhe. 

O que não existia, era tantos eucaliptos e tantos pinheiros bravos, que ardem como palha, nem tanto despovoamento do interior. 

Em 1966, concretamente, morreram 25 militares no combate a um incêndio ocorrido na serra de Sintra. 

Durante as muitas caminhadas que fiz na serra de Sintra, aos fins de semana, estive mais do que uma vez no local onde eles morreram, que se situa perto do convento dos Capuchos. O local está assinalado por uma cruz e uma placa de mármore com os nomes das vítimas, e o terreno em volta estava totalmente desmatado. 

Para lá se chegar, sai-se de uma encruzihada próxima dos Capuchos, onde confluem as estradas para o palácio da Pena, para o convento dos Capuchos, para o Pé da Serra e para a Peninha. Sobe-se por uma "picada" que sai dessa encruzilhada no sentido do Monge (um túmulo pré-histórico) e que acaba por desembocar perto da Peninha. 

Os pormenores do trágico incêndio podem ser lidos aqui: 


3. De facto, sempre houve fogos florestais em Portugal ao longo dos séculos, não é só um fenómeno exclusivo da atualidade... 

Só por populismo, demagogia ou ignorância histórica se pode afirmar o contrário, nomeadamente nas redes sociais,  procurando-se tirar partido, emocional e politico-partidariamente, da tragédia que são sempre, todos os anos, os incêndios em Portugal e demais países de clima mediterrânico (Espanha, Sul de França, Itália, Grécia, etc.).

Mas em breve voltaremos à barbárie: cortem-se as mãos aos incendiários, já se ouve por aí... Ou, então, acabem-se com os isqueiros e as caixas de fósforos em Portugal. E até mais: encerrem-se as gasolineiras...

A afirmação
 de que sempre houve incêndios florestais em Portugal ao longo do séc. XX acaba por ser uma realidade histórica inegável. 

O que mudou, e muito,  foi perceção pública e a escala dos incêndios  nas últimas décadas. Estamos de acordo o Fernando Ribeiro.

E depois, é bom não esquecer (!),  havia quem, até aos 25 de Abril de 1974,  decidisse por nós, cidadãos de 2ª classe,  o que podíamos ler ou não nos jornais, ouvir ou não na rádio, ver ou não na televisão...

Os registos históricos confirmam que o fogo foi um elemento recorrente e transformador das paisagens rurais e florestais portuguesas durante todo o século passado e séculos anteriores.

Uma conjugação de fatores, desde políticas de florestação a profundas alterações socioeconómicas, moldou a história dos incêndios no país.

Os incêndios florestais em Portugal têm raízes históricas profundas e são resultado tanto de processos naturais quanto de atividades humanas de gestão do território ao longo dos séculos. 

Se olharmos para registos históricos, relatos de cronistas, arquivos municipais e até estudos de paleobotânica, vemos que os incêndios rurais e florestais existiram sempre, de Norte a Sul do país, associados a vários fatores.

(i) Registos históricos de incêndios florestais

Existem indicações de uso e ocorrência de fogos florestais que remontam a milhares de anos, detetados por depósitos de carvão com mais de 11 mil  na Serra da Estrela, associados a grandes incêndios ligados à ocupação humana e gestão agropastoril.

Desde a Idade do Bronze e do Ferro, o fogo foi utilizado para desflorestação e construção de novas áreas agrícolas, o que provocava incêndios regulares.

Registos escritos de municípios portugueses já no século XIV documentam preocupações e legislação para evitar incêndios em matas, particularmente zonas de sobreiros e azinheiras.

(ii) Incêndios notáveis nos séculos XIX e XX

No Pinhal de Leiria, registaram-se grandes incêndios, como os de 1806, 1814, 1818, 1824 (cerca de 4.000 ha), 1825 (cerca de 5.000 ha) e 1875 (cerca de 300 ha).

No séc. XIX, já se encontravam em vigor portarias e legislação para proteção florestal e combate às queimadas.

Desde a década de 1960, os incêndios passaram a ser mais frequentes, intensos e recorrentes.  

Tornam-se mais comuns a partir dos anos 1970 devido a profundas transformações sociais, demográficas e económicas (guerra do ultramar, emigração, expansão de áreas florestais, sobretudo de eucalipto, abandono rural, industrialização e urbanização do país, etc.).

Repare-se nestes dados:

1930 > Censo da população > 6 825 883 habitantes (Continente e Ilhas). Só 1 em cada cinco portugueses (19%) residia em cidades (594 mil em Lisboa, 232 mil no Porto e 485 mil nas restantes);

1950 > População activa: 3.2 milhões (50% no sector primário, 24% no sector secundário e 26% no sector terciário); por outro lado, mais de quarenta anos depois da instalação, por Alfredo da Silva, das primeiras fábricas de produtos químicos nos terrenos de aluvião da Margem Sul do Tejo, o complexo químico-industrial do Barreiro ocupava então uma área de 21 hectares; o maior grupo económico português era constituído por centena e meia de empresas e 10 mil trabalhadores.

1951 > Inauguração da barragem de Castelo de Bode, uma obra emblemática do Estado Novo e elemento-chave do plano de electrificação de 1944, e da industrialização do país; inaugurada, também nesse ano,  a ponte de Vila Franca de Xira, permitindo uma mais rápida ligação Norte-Sul.

(iii) O fogo como fenómeno mediterrânico natural

O fogo é considerado um fenómeno natural nos países do Mediterrâneo, tendo papel importante na dinâmica ecológica e na sucessão de algumas espécies vegetais. Factos a destacar:
  • o uso tradicional do fogo para renovação de pastagens e controle de vegetação sempre esteve presente na paisagem portuguesa e mediterrânica;
  • os pastores eram recorrentemente acusados de "incendiários";
  • clima mediterrânico. verões longos, quentes e secos,  favorecem a propagação do fogo;
  • práticas agrícolas tradicionais, como as queimadas para renovação de pastagens ou limpeza de terrenos, que muitas vezes saía fora de controlo;
  • trovoadas secas (factor a não negligenciar como causador de incêndios, tal como na Guiné);
  • descuidos e acidentes: desde tempos medievais há relatos de incêndios ligados a fogueiras,  produção de carvão, cal, forjas, etc. ou até relâmpagos;
  • estrutura da vegetação: matos, pinhais, sobreirais, giestais e eucaliptais (mais recentes) sempre foram combustíveis disponíveis; todavia, o coberto mediterrânico, com sobreiros, azinheiras e castanheiros é mais resistente ao fiogo.
Refira-se que o eucalipto foi introduzido em Portugal em meados do séc. XIX:  os  primeiros exemplares plantados em jardins e hortos botânicos destinavam-se a  fins... terapêuticos e científicos.

 Planta exótica, acabou por se tornar uma praga:  as plantações comerciais iniciaram na década de 1880, invadindo propriedades privadas e Matas Nacionais. 

 O Eucalyptus globulus tornou-se a espécie dominante (devido à sua boa adaptação ao nosso clima e ao seu rápido crescimento). (Passemos por cima do seu peso na economia portuguesa, na estrutura do emprego, etc.)

A diferença em relação ao passado, e no que diz respeito aos incêndios florestais,  é a escala, a frequência e o impacto socioeconómico:

  • antes, os fogos eram mais localizados, porque a floresta estava mais fragmentada entre campos agrícolas, baldios e áreas de pastoreio;
  • nos nossos dias, com o abandono rural, a continuidade de matos e florestas densas e a expansão do eucalipto e do pinheiro, o fogo alastra de forma muito mais rápida e devastadora.

Portanto, dizer que "só há incêndios hoje" é, de facto, uma mistificação histórica. O que mudou foi o contexto social, económico e ambiental, que faz com que os fogos atuais sejam mais extensos e difíceis de combater.
 
Aqui vão alguns exemplos documentados que ajudam a perceber que os incêndios florestais fazem parte da história de Portugal muito antes do século XX:

 
(iv) Portugal a ferro e fogo... Da Idade Média à Época Moderna

Séc. XIV

Nas Ordenações Afonsinas já aparecem normas para punir quem fizesse queimadas descuidadas que levassem a incêndios em montes e matos.

Séc. XV-XVI 

Há registos em cronistas e câmaras municipais de incêndios em pinhais e matos, sobretudo ligados à preparação de terras para agricultura ou pastoreio.

Pinhais de Leiria (plantados desde o reinado de D. Afonso III e expandidos por D. Dinis) sofreram incêndios várias vezes nos séculos XVI e XVII; há referências a fogo “que ardeu muitos pinheiros” e necessidade de reflorestação.

Séc. XVIII

O Terramoto de 1755 originou também incêndios urbanos e rurais que se estenderam a zonas florestais próximas de Lisboa e outras zonas atingidas.

Em 1792, um alvará régio regulava o uso do fogo em baldios e pastagens, por causa dos “grandes danos dos fogos desmandados que frequentemente incendeiam os matos e arvoredos”.

Séc. XIX

Há várias notícias em jornais da época sobre incêndios em pinhais, matas e serras. Por exemplo:

1824: referência a incêndios no Pinhal de Leiria; criação da AGMR (Administração Geral das Matas do Reino).

1843: notícia no Diário do Governo sobre fogos em matas nacionais.

1853: grandes incêndios em Trás-os-Montes e Beiras são relatados como “desgraças repetidas”;

1876: grandes incêndios no Alentejo;
 
1882/83:  grandes incêndios na Mata do Buçaco.

Desde o início do século XIX, existiam preocupações institucionais e técnicas sobre a gestão florestal e a prevenção de incêndios, especialmente com a criação em 1824 da AGMR e os trabalhos de campo e científicos de silvicultores como:

  • José Bonifácio de Andrada e Silva (fim do século XVIII / início do XIX); 
  • Bernardino António de Barros Gomes (1839–1910);
  • Adolfo Möller (formado na Alemanha, responsável pela arborização de margens do rio Mondego, na década de 1860).

Em resumo: podemos afirmar com segurança que os incêndios florestais sempre existiram em Portugal. 

O que acontece nos séc. XX e XXI é que, com o êxodo rural, a continuidade do coberto vegetal e a monocultura florestal (eucalipto), os fogos passaram a ser mais extensos e mais frequentes. E as preocupações com a sua prevenção já são não de agora.

 
(v) Incêndios florestais: uma constante na paisagem portuguesa do Séc. XX 

Embora a sistematização de dados sobre áreas ardidas só se tenha tornado mais rigorosa a partir da década de 1980, é possível delinear uma cronologia de eventos significativos que marcaram o século XX.

No início do século, os incêndios eram frequentes, mas muitas vezes de menor dimensão e mais ligados a práticas agrícolas e pastoris. 

A gestão do fogo fazia parte do quotidiano rural, sendo utilizado para a renovação de pastagens e limpeza de terrenos. No entanto, a falta de controlo resultava frequentemente em incêndios de maior escala.

A partir da década de 1960, a frequência e a dimensão dos grandes incêndios florestais começaram a aumentar de forma notória.

 Eventos como os incêndios em Vale do Rio/Figueiró dos Vinhos e Viana do Castelo (1961), na Serra de Sintra (1966) (que resultou na morte trágica de 25 militares) e na Serra de Monchique (1966), evidenciaram uma nova e mais perigosa realidade.

As décadas seguintes foram marcadas por uma escalada no número de ocorrências e na área ardida. 

O ano de 1986 assinala um marco sombrio, com o primeiro incêndio a ultrapassar os 10 mil  hectares. 

A partir daí, os "mega-incêndios" tornaram-se uma preocupação crescente, culminando em anos de extrema severidade já no final do séc. XX e no início do séc. XXI.


(vi) As Raízes do problema: causas e consequências

A omnipresença dos incêndios florestais em Portugal no séc. XX pode ser atribuída a um complexo de causas interligadas:
  • Políticas de Florestação: 
No Estado Novo nacionalizou baldios e implementou uma vasta campanha de florestação, com o objetivo de combater a erosão dos solos e aumentar a riqueza florestal do país. 

No entanto, a aposta em monoculturas de espécies de rápido crescimento e elevada inflamabilidade, como o pinheiro-bravo e, mais tarde, o eucalipto, criou vastas áreas contínuas de combustível, propícias à propagação de grandes incêndios.

  • O Êxodo rural e o abandono de terras: 
A partir de meados do século, a intensificação do êxodo rural para os centros urbanos e para o estrangeiro provocou uma profunda alteração na paisagem e na estrutura social do interior do país. 

O abandono de terras agrícolas e de práticas tradicionais de gestão do território levou à acumulação de matos e outro material combustível, tornando as florestas mais densas e perigosas.

  • Declínio da agricultura e pastorícia tradicionais: 
A diminuição da pastorícia extensiva (incluindo a transumância)  e da agricultura de subsistência, que anteriormente garantiam a limpeza de vastas áreas de mato, contribuiu significativamente para o aumento da carga de combustível nas florestas.

  • Fatores humanos: 
A esmagadora maioria das ignições teve origem humana, seja por negligência (queimadas mal controladas, fogueiras, foguetes lançados em festas e romarias, etc.) ou por ação intencional (fogo posto, piromaníacos, incendiários). 

A falta de sensibilização e de fiscalização foram fatores que potenciaram este problema ao longo de décadas.


(vii) A evolução (lenta) da prevenção e do combate

A resposta do Estado, das empresas e da sociedade aos incêndios florestais evoluiu de forma lenta e reativa ao longo do século XX.

Nas primeiras décadas, o combate aos incêndios era rudimentar, dependendo largamente da mobilização de populares, com meios escassos e pouco eficazes. 

A estrutura de bombeiros voluntários, embora fundamental, debatia-se com a falta de formação e de equipamentos adequados para fazer face a grandes incêndios florestais.

A tragédia da Serra de Sintra em 1966 foi um ponto de viragem que expôs as fragilidades do sistema de combate e alertou para  a necessidade de uma estrutura mais bem organizada. 

No entanto, só nas últimas décadas do século se assistiu a uma aposta mais significativa na:

  • profissionalização dos bombeiros;
  • criação de corpos especializados;
  • aquisição de meios terrestres e aéreos mais sofisticados.

As políticas de prevenção também tardaram em ser implementadas de forma eficaz. A aposta centrou-se durante muito tempo no combate, em detrimento de uma gestão florestal integrada que promovesse a descontinuidade dos combustíveis e a criação de mosaicos agrícolas e florestais mais resilientes ao fogo.

Em suma, a história dos incêndios florestais em Portugal no século XX é a crónica de uma paisagem em transformação, marcada por decisões políticas, mudanças sociais profundas e uma crescente vulnerabilidade ao fogo, agravadas pelas alterações climáticas. 

A afirmação de que "sempre houve incêndios" é, portanto, um ponto de partida para a compreensão de um problema complexo e multifacetado que continua a desafiar o país no presente e no futuro imediato. (**)


(Pesquisa: LG | Assistente de IA / ChatGPT, Gemini, Perplexity)

(Revisão / fixação de texto, negritos e itálicos: LG)
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Notas do editor LG:

(*) Vd. poste de 30 de agosto de 2025 Guiné 61/74 - P27166: Os 50 anos da independência de Cabo Verde (9): Secas e fomes levaram ao longo do séc. XX à morte de mais de 100 mil pessoas